Há 13 anos, a empresa belga Solvay foi contratada pela Cetesb para criar um Plano de Remediação da área
No dia 31 de março de 1983, há 42 anos, chovia forte em Porto Feliz. Um motorista manobrava seu caminhão no pátio da empresa USA Chemicals Indústria e Comércio Ltda, na Chácara São Vicente (entrada de Porto Feliz/Sorocaba), quando colidiu o veículo contra o registro de um dos tanques. O incidente causou o vazamento de aproximadamente 400 mil litros de solventes alógenos, substâncias químicas altamente tóxicas.
Imediatamente, a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) e o Serviço Autônomo de Água e Esgoto (Saae) foram acionados para conter o vazamento químico. Pouco pôde ser feito. Os solventes espalharam-se e depois penetraram no solo, causando um dos maiores acidentes químicos do país.
Nos dias seguintes, a região foi interditada após a morte de peixes e animais. “Por onde esse produto passou, morreu tudo: peixes, árvores…”, relatou um ex-diretor do Saae ao jornal Tribuna das Monções à época. O impacto ambiental foi devastador, e os efeitos persistem até hoje.
De acordo com um relatório da Cetesb de 2000, os produtos que contaminaram o solo e as águas do bairro Palmital podem causar “prejuízos à saúde humana” mesmo em baixas concentrações. Na época, pessoas que tiveram contato com as substâncias apresentaram necrose (apodrecimento) de tecidos e danos ao sistema nervoso.
“Gosma”
As substâncias infiltraram-se no solo, criando uma “gosma” que se movimenta pelo subsolo próximo à região atingida. Essa massa, batizada de “pluma” pelos técnicos, é escura, de mau cheiro e continua a se espalhar. Impedida de avançar para camadas mais profundas devido à presença de rochas e argila, a contaminação se deslocou em direção norte, atingindo o bairro Bambu e cruzando a rodovia Marechal Rondon.
Os produtos químicos, levados pelas águas subterrâneas e impedidos de aprofundar-se no solo por causa das pedras e argila, foram se espalhando na direção norte. Do bairro Bambu, a pluma avançou na direção da rodovia Marechal Rondon e atravessou-a. Uma das maneiras para acompanhar o avanço dos produtos químicos é examinar a água dos poços daquela parte de Porto Feliz. É possível também colher amostras do solo ou dos gases exalados pelos produtos. O problema é que todas são caras e trabalhosas.
Área interditada
Desde então, a área permanece interditada e monitorada, mas nunca houve divulgação clara sobre seu estado para o maior interessado: a população porto-felicense. Durante décadas, o silêncio imperou.
Em novembro de 2018, ocorreu uma audiência pública da Câmara Técnica de Proteção das Águas (CTPA) do Comitê da Bacia Hidrográfica dos Rios Sorocaba e Médio Tietê (CBH-SMT), na Câmara Municipal de Porto Feliz. A reunião teve como foco principal a discussão sobre a contaminação do solo e da água subterrânea causada por um acidente ocorrido em 1983 na antiga empresa USA Chemicals. Estiveram presentes na audiência representantes da CTPA-CBH-SMT, o prefeito Antônio Cássio Habice Prado, alguns poucos vereadores, a promotora de justiça à época, representantes do Saae, da Cetesb, da Vigilância Sanitária de Porto Feliz e do Daee (Departamento de Águas e Energia Elétrica).
Contaminantes
Representantes da Cetesb relataram que têm realizado monitoramento contínuo da área desde o acidente, identificando diversos contaminantes, como tetracloreto de carbono, tricloroeteno e cloreto de vinila. De acordo com a ata da reunião, os representantes da Cetesb informaram que a empresa Solvay estava responsável por conduzir estudos detalhados sobre a contaminação, incluindo avaliação de risco à saúde humana e estudo de intrusão de vapores.
Investigação
A Solvay, empresa belga fundada há 160 anos e líder global na indústria química, iniciou investigações ambientais mais conclusivas em 2013. A empresa avaliou a área interna e externa da antiga USA Chemicals, investigando solo, águas subterrâneas e vapores emitidos pelo solo. Esses estudos têm como objetivo compreender a extensão da contaminação e propor medidas de remediação para mitigar os impactos ambientais e à saúde pública.
Tivemos acesso ao documento. O relatório apresenta uma tabela com os resultados da amostragem realizada entre maio e junho de 2017, mostrando a presença de contaminantes em vários pontos de monitoramento.
Inconclusivo
A proposta do estudo inclui medidas de controle e restrição para poços de captação de água subterrânea, dependendo da concentração de contaminantes encontrados. A empresa europeia identificou a presença de substâncias como clorofórmio, diclorometano, tetracloreto de carbono, tricloroetano e bromofórmio. À época, a Solvay recomendou aos órgãos competentes a necessidade de ações contínuas de monitoramento e remediação.
Segundo a Solvay, a geologia complexa da região dificulta a identificação precisa do comportamento da contaminação no subsolo e a posição exata da “gosma”.
A empresa apresentou os resultados das investigações e comprometeu-se a entregar um plano de intervenção para a área contaminada.
O documento é um relatório técnico e tem como objetivo fornecer subsídios para a avaliação do projeto e a tomada de decisões relacionadas à contaminação do solo e das águas subterrâneas na área. Esses documentos, relatórios e ações foram encomendados há mais de uma década pela Cetesb, mas nunca foram colocados em prática.
Cetesb analisa
Solicitamos todos os documentos, relatórios e ações realizadas no local, bem como a situação atual da área atingida, para a realização de uma reportagem. A Cetesb respondeu que, desde 1983, mantém monitoramentos anuais da qualidade das águas subterrâneas no entorno da área onde ocorreu o acidente, coletando amostras em poços pertencentes a chácaras, comércios e indústrias localizadas nas imediações da Chácara São Vicente, bem como em corpos d’água e nas estações de captação de água para abastecimento público da cidade.
De acordo com a Cetesb, não houve alteração no cenário da contaminação ao longo das décadas, e os poços impactados permanecem os mesmos, sem mudanças significativas nas concentrações dos contaminantes. “Em nenhuma oportunidade foi verificada alteração na qualidade das amostras obtidas nas estações de captação de água do município”, afirmou o órgão estadual.
Estudo solicitado
A Cetesb confirmou a encomenda de uma investigação à empresa europeia Solvay. Questionada sobre o estudo iniciado em 2013, a Cetesb informou que as ações ainda não foram implementadas. “Em 2013, foram iniciados os trabalhos de investigação ambiental no local, sob responsabilidade da Solvay, tendo sido já executadas as etapas de Avaliação Preliminar, Investigação Confirmatória, Investigação Detalhada e Avaliação de Risco à Saúde Humana. O caso encontra-se atualmente na etapa de elaboração do Plano de Intervenção”, confirmou a Cetesb em documento.
Ao ser questionada sobre a demora para a conclusão do estudo e sua implantação, a Cetesb respondeu: “O Plano de Intervenção está sendo elaborado e ainda não foi apresentado para avaliação da Cetesb. Ele contemplará as ações a serem implementadas para a remediação da área. Não há prazo definido para o início de sua execução”, finalizou.
Solvay Brasil
Entramos em contato com o escritório da empresa Solvay no Brasil para obter informações sobre o estudo e a demora para início do Plano de Remediação do local. A empresa confirmou que está conduzindo uma investigação sobre o assunto. No entanto, ao questionarmos sobre a demora na conclusão do relatório e na implementação das ações necessárias, o representante da Solvay encerrou a conversa e não retornou nossos contatos posteriores.
Continuamos em busca de informações sobre o estudo. Procuramos a sede da empresa Solvay, na Bélgica, e questionamos sobre a demora para a conclusão do plano e em qual etapa ele se encontra. A representante da empresa, Laetitia Van Minnenbruggen, assumiu a frente do caso e encaminhou rapidamente a solicitação aos representantes no Brasil.
Solvay responde
Uma semana depois, a sede da Solvay no Brasil respondeu: “A Solvay esclarece que sua participação na recuperação da área da antiga USA Chemicals, em Porto Feliz, decorre de uma solicitação das autoridades ambientais, devido a uma breve relação comercial com a empresa há mais de 40 anos. Desde a solicitação, ocorrida em 2013, a Solvay tem conduzido estudos ambientais rigorosos, seguindo todas as normas técnicas e regulatórias, bem como seus cronogramas, para subsidiar um Plano de Intervenção que viabilizará a recuperação da área. Atualmente, os estudos estão em fase final de elaboração e a área permanece segura e isolada, sob a supervisão dos órgãos competentes”.
Providências
É urgente que as autoridades locais, incluindo vereadores e o prefeito, cobrem agilidade do governo estadual e da Cetesb na conclusão do Plano de Remediação. A população merece transparência e ações efetivas para solucionar um problema que já dura quatro décadas.
A saúde pública e a preservação do meio ambiente devem ser prioridades. Porto Feliz não pode continuar esperando por uma solução que já deveria estar em andamento. É dever dos representantes locais pressionar por medidas imediatas, garantindo que o legado tóxico deixado pelo vazamento de 1983 seja finalmente remediado.